Transformadores de vida
Na minha infância, no interior das Minas Gerais uma figura bem comum era a de um tipo de comerciante que me permitiu descobrir que , de fato, existiam outros povos, que não só os brasileiros e, por extensão, outros países com idiomas, costumes e até aparência diferentes.
Me refiro aos mascates, vendedores de todo tipo de bugigangas que peregrinavam pelas cidades oferecendo, de porta em porta, seus produtos maravilhosos. Comercializavam de tudo, de vela a aviões de brinquedo, claro, que naqueles idos viajar num aeroplano era inimaginável para 99 % da população do país.
Árabes em sua maioria os mascates acabaram contribuindo, de forma decisiva para o fomento com comércio varejista de todo o Brasil, vez que introduziram o crediário baseado na confiança, usando seus gestos largos e simpatia para criar uma verdadeira legião de clientes por onde passavam. Era comum mesmo esperar pela passagem deste ou daquele mascate com seus produtos maravilhosos.
E o laço de amizade que eles acabavam criando em determinadas regiões lhes inspirava a encontrar nesses locais, um porto seguro para que aventurassem na abertura de pequenos estabelecimentos que terminariam por marcar de modo indelével a própria história dessas cidades, vilas ou povoados. Chego mesmo a imaginar que, quem tem acima do 70 como eu, com certeza se lembra de um ou outro nome de algum mascate. São recordações muito importantes para mim, pois foi exatamente com um deles, um italiano espalhafatoso, que me fora oferecida a primeira oportunidade de trabalho.
No alto dos meus seis para sete anos, o velho Luiz Biazzolli me contratou pela polpuda soma de CR$ 2,00 ( Isso mesmo, dois cruzeiros. Uma colorida nota azul e laranja, com a estampa do Duque de Caxias – o próprio: Luiz Alves de Lima e Silva, patrono do glorioso Exército Brasileiro), para ser o babá de sua tropa de cavalos e éguas, todos campolinos de puro sangue, usados no aluguel de suas charretes, seja para transportar pessoas ou para leva-lo a seus clientes da comercialização de armarinhos, de onde tirava o grosso do sustento de sua família
Sei que, em muitos provoquei um certo espanto ao dizer que fui contratado, com seis anos de idade para essa atividade remunerada. Mas na época isso era bem comum. Filho de família pobre e numerosa, o acesso ao mercado de trabalho se dava muito cedo, até como forma de sobreviver mesmo. Minha tarefa era simples. Deveria, todas as manhãs, recolher num pequeno pasto agregado à casa do mascate, os animais que para ali deveriam conduzir no final da tarde. Demorava, em média, dez minutos pela manhã, e outro tato à tarde para cumprir essa difícil tarefa.
Essa oportunidade me fez destacar entre meus amigos e vizinhos. É que não demorou muito para que, após se acostumarem comigo, os cavalos e éguas que eu levava ou trazia ao pasto pareciam se divertir como eu, quando lhes montava , em pelo e saia galopando por algumas ruas da cidade.
Nessa tarefa inesquecível permitia que um ou outro amigo partilhasse da emoção de trotar num belo animal, fazendo na cidade uma coisa que se pensava ser possível só numa fazenda. Isso reforçava nossos laços de amizade e me fazia uma espécie de líder da molecada. Mesmo porque, nos fins de semana eu sempre podia pagar pelo ingresso de um amigo nas sessões do matinê, numa das salas de cinema da cidade.
Fiquei bem uns dois anos nessa tarefa, até que Jamel El Kadisch, mascate puro sangue do Líbano, me convidasse para fazer a limpeza de sua lojinha, todos os dias pelo espetacular salário de CR$5,00 (Cinco cruzeiros. Grana poderosa que se desenhava no papel moeda onde as cores de um verde oliva bem pálido quase se fundia a um cinza também esmaecido onde se destacava a figura bigoduda do Barão do Rio Branco. O dinheiro me parecia tanto que cheguei a propor casamento a minha namorada de infância, com compromisso firmado para qualquer momento nos anos seguintes. Esse devaneio, porém, não se cumpriu.
Ao longo do tempo conheci outros mascates e com vários deles fui ampliando as minhas formas de conseguir um trabalho e garantir salários que transformaram não só a minha vida, mas a de muitas outras pessoas que tiveram a oportunidade de ter acesso às recompensas do trabalho digno por mãos amigas e interessadas apenas em retribuir aos seus antigos clientes, nossos pais, a atenção e acolhida que lhes fora dispensada quando, recém chegados ao Brasil, percorreram esse país consolidando sua capacidade de trabalho e semeando bondade por onde passaram.
Não tenho notícias de que eles ainda possam existir de uma ou outra forma, mas não me surpreenderia se, de repente, topasse com um ralidina baculé, pé de turco tem chulé, vendendo sonhos e esperanças por aí.