Crônica: A Vingança
Conto o milagre, mas não conto o santo. Até porque preciso preservar a memória de um dos personagens desta história, que já não divide esse mundão conosco mais.
De 1962 até meados dos anos 80 fui cronista esportivo atuando no rádio, jornal e televisão. Época em que o futebol goiano era cantado em verso e prosa por esse “Brasilsão”, fosse pela habilidade de seus craques, ou pela paixão com que o esporte que move a emoção dos torcedores.
O que vou relatar, porém, aconteceu dentro de campo não envolvendo atletas, mas profissionais de imprensa. A Rádio Difusora de Goiânia tinha, nos anos 70, uma poderosa equipe comandada pelo saudoso Manoel José de Oliveira e estrelada por nomes consagrados como os de Draulas Vaz, Ney Fernandes, Amir Sabbag, Evandro Gomes, Levy de Assis, Reid Duarte e tantos outros.
Era comum, durante as transmissões rotineiras, que repórteres narradores e até comentaristas se permitissem certos arroubos com os quais adornavam suas participações com a voz entonada e frases com as quais eram perfeitamente identificados pelos radiouvintes. E por isso mesmo era comum que cada membro da equipe tivesse um apelido de guerra. O Draulas, por exemplo, era o mais premiado comentarista esportivo do centro-oeste; Edson Rodrigues, o melhor narrador do país: José Calazans o narrador mais vibrante, e daí por diante.
Um dia, um desses colegas, a quem vou chamar de Humberto Santos, foi abordado por alguém que lhe chamou de Alberto Pereira. Ao corrigir a abordagem, Humberto se exaltou e deu margem a que os colegas o apelidassem, no mesmo momento de Pereira. O apelido foi rispidamente rejeitado por Humberto, ao ponto de isso ser lembrado apenas para rememorar a bronca do Humberto quando chamado de Pereira pela primeira vez.
Entre os colegas de equipe havia um, com personalidade marcante pelos largos gestos de cordialidade, simpatia e elevado grau de educação. Vou identificá-lo como Aristeu Lobo. Teoricamente, era impossível imaginar que Aristeu pudesse, de livre e espontânea vontade, fazer uma brincadeira capaz de enervar a quem quer que fosse.
Certo dia, durante uma transmissão de futebol noturna, ainda no gramado do velho estádio olímpico a equipe escalada para cobrir aquele Goiânia e Santa Helena, pelo goiano era formada pelo Humberto como narrador, Amir, comentarista, eu, o saudoso Edson Costa e Aristeu como repórteres de pistas.
Com as equipes em campo e se preparando para o início do jogo, os repórteres encerram suas primeiras participações e cabe a Aristeu acionar o pessoal da cabine. E ele o faz com a elegância de sempre: “ Tudo pronto, senhora e senhores. Foi tirado o ‘toss’ e o Goiânia vai se postar à esquerda da nossa cabine, com Santa Helena posicionando-se na defesa do gol que dá para a Avenida Paranaíba. Juiz e bandeirinhas conferem seus cronômetros e devolvemos o comando desta jornada para o mais perfeito narrador esportivo do Brasil, Humberto Alberto Pereira Santos”.
Por 10 segundos que pareceram dez horas, ouviu-se a respiração ofegante do Humberto num indicativo claro de que Aristeu havia mexido num vespeiro. E antes que alguém pudesse imaginar o que poderia acontecer Humberto assume o microfone e sentencia:
“_ Tivemos assim, senhoras e senhores, as participações primeiras de Luiz Augusto da Paz, o computador da Seleção do Povo, de Edson ‘Coragem’ Costa e do cabeça de jacaré de Jataí, Aristeu Lobo”.
Seguiu-se uma sonora gargalhada por todo o estádio, mas há quem diga que o estado inteiro se divertiu com a vingança de Humberto, embora a Rádio Difusora só atuasse em AM. A transmissão seguiu sem mais atropelos. O incidente também acabou como começou.