Por uma política sem medo daquilo que não se pode ver

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Há uma máxima em política, especialmente a que foca tão somente no aspecto eleitoral, que o que não é visto não dá voto. Em razão disso, há uma indisfarçável predileção dos políticos em assuntos ou causas pirotécnicas, isto é, aquelas capazes de aquecer o nome de um ou uma política no imaginário popular – a neurociência explica o poder da repetição sobre o cérebro humano. Quando não são as apostas em polêmicas de turno, as conhecidas “politicagens” ou “ações politiqueiras” galvanizadas pelas ferramentas do marketing, são as simplificações do mundo real com o fim de enviar à sociedade uma mensagem de pleno controle de uma dada situação, dando-lhe, na maior das vezes, respostas superficiais que não corrigem problemas complexos.

Nos últimos dias, acompanhamos com estarrecimento e consternação os males humanitários, sociais e econômicos causados pelas chuvas torrenciais no litoral paulista. Aliás, será que foram mesmo as chuvas o pivô da crise? É uma questão recheada de “e se?”: e se houvesse adequado planejamento urbano?, e se o poder público tivesse zelo frente à política de ocupação e uso do solo?, e se a política pública de habitação popular fosse uma prioridade?, e se a desigualdade social e a pobreza não fossem tão eloquentes no Brasil, será que teríamos tantos mortos, ainda que levando em consideração a excepcionalidade pluviométrica deste fevereiro? Arrisco, assentada no óbvio, a dizer que não.

Malgrado estejamos falando do estado de São Paulo, mais especificamente, de sua região litorânea, o fenômeno escalonado nos “e se” citados anteriormente replicam-se abundantemente em todas as regiões do país e em todas as áreas metropolitanas. Em Goiânia, capital do estado de Goiás, as chuvas deste começo de 2023 impressionam, quer seja pelo seu volume, quer ser pelas (in)ações do setor público para mitigar os impactos e, ato contínuo, para resolver as causas que impõem à cidade uma posição de vulnerabilidade em face de extremos climáticos.

Aos ciclos que mais estudam e debatem o futuro sustentável desta capital, não restam dúvidas de que a causa maior de tanta pasmaceira é que “política urbana consistente e com foco no longo prazo não dá voto”, o capital eleitoral vem a partir das ações a posteriori de alguma tragédia: abrigos temporários, campanhas de doação de roupa e cestas básicas e as muitas entrevistas dadas na imprensa local. Isso, sim, garante visibilidade e fidelização do eleitor que, como asseguram os mais safos, “apesar de terem memória curtíssima, não esquece de quem o tirou da lama”.

Por uma questão de justiça, tanto ao tempo quanto ao território, a escolha pelo cuidado com a superfície dos problemas não está concentrada nesta quadra histórica e nem neste território apenas. Como exemplo, o orçamento federal aprovado no ano passado, 2022, previu a injustificável e lamentável cifra de R$ 25 mil na rubrica “obras emergenciais de mitigação para redução de desastres”. Este valor, em si, já seria afrontoso, mas poderia ser passível de justificação ou explicação caso as causas dos desastres, as que estão sob as rédeas da gestão pública, estivessem sendo atacadas, o que não aconteceu vis-à-vis o quinhão orçamentário destinado à política de moradia, R$ 34,1 milhões.

Mas não é porque é um dado da existência política brasileira que vamos deixar de criticá-lo. Voltando à Goiânia, infelizmente, o Plano Diretor aprovado pela Câmara Municipal e sancionado pela Prefeitura em 2022 ignora pontos muito sensíveis de política urbana e que podem redundar em tragédias humanitárias tal como vimos este ano em São Paulo e Pernambuco; ano passado, na Bahia e no Rio de Janeiro; no anterior, em Minas e assim por diante. Na prática, o poder público autorizou que pessoas, as de menor poder aquisitivo, claro, pudessem construir em encostas de morro e região de vale.

Ademais, não faz muito tempo, foi leiloado um terreno público, entre as ruas 136 e 148 no setor Marista, que está sobre a nascente do Córrego Buriti e cuja destinação será para a construção de um espaço comercial, ou seja, marcando a morte desta fonte de água. Isto, em um momento em que a drenagem urbana ganha força no debate público, dados os inúmeros alagamentos e inundações e a infausta morte de um jovem de apenas 22 anos, no final de janeiro, arrastado pela enxurrada.

Traçado este panorama, o que muitos estudiosos e estudiosas da Ciência Política tem buscado é apontar que a crise de representatividade que grassa no país tem amparo na distância entre expectativas coletivas e entrega da política institucional frente aos grandes desafios da vida urbana. Exemplo, faz sentido a Prefeitura municipal pautar que será priorizado o campo da drenagem quando, a um só tempo, permite que ações que reforcem este problema continuem acontecendo? Do mesmo modo, faz sentido que uma Câmara Municipal não tenha um ou uma representante das fundamentais agendas que, por definição, não são vistas?

É urgente refletir sobre essas máximas. E sem querer engessar ou esterilizar a política, afinal, nesta há um forte componente teatral, mas é imperioso que deixemos a pura encenação aos artistas e aos teatros e a pirotecnia, aos circenses.


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